Quanto todos nós cá chegamos, ela já por cá estava. Já
fazia parte da família. Já ajudava no trabalho e no “ganha pão de cada dia!”
Era a nossa burra, não tinha nome, era apenas e
somente burra. Também ela era como não podia deixar de ser a burra de carga, a
que carregava tudo e todos. Quem de nós não andou vezes sem conta à bolei,
simplesmente no seu dorso, outras vezes coberta e protegida pela albarda, e
outra vezes com as cangalhas. Nas cangalhas onde todos nós cabíamos. Nós os
cinco, uns de um lado e outros de outro, era a festa completa. Disto nem de
outras coisas a burra nunca disse nada. Mas se ela suspeitasse que ia
trabalhar, e ela suspeitava muitas vezes disso, fugia a quatro patas, olhem que
ela nem sequer se importava de dormir fora de casa, estava-se nas tintas para
isso. Por vezes era procurada já noite dentro, acabando por ser encontrada,
outras vezes só aparecia ao outro dia. Já não tenho bem a certeza, mas acho que
ela chegou a desaparecer por mais que um dia. Digam lá se a nossa burra não era
esperta.
Mas ela não trabalhava apenas para nós, ela também
trabalhava para a vizinhança, que muitas vezes a pedia emprestada. Levavam-na
de manhã e traziam-na de volta à noite. Em troca algumas vezes vinha
acompanhada de uns quilos de arroz, massa e afins, que serviam de sustento à
família. Mas o senhor José Augusto, dono da burra e nosso pai nem sempre ficava
contente com o regresso da sua burra. Porque ela vinha muitas vezes cheia de
mataduras (feridas), ele dizia que a burra olhava para ele com muita tristeza.
Por isso ele deixou de emprestar a burra, quando alguém lha pedia emprestada,
ele preferia acompanha-la. Só ele a sabia tratar bem, envolver-lhe com panos ou
cobertores para que as carregas de lenha não a magoassem, tinha muito cuidado
com a alimentação dela.
Não sei o que é que ela sentia por nós, mas também não
devia nutrir qualquer tipo de simpatia pelo pessoal, que carregava vezes sem
conta no lombo. São disso os diversos episódios: quando levava um de nós a
acavalo desatava a correr até atirar com o “cavaleiro” ao chão, em seguida ia
simplesmente pastar, como se nada tivesse acontecido. O Augusto era um dos seus
bons amigos, gostava de lhe dar comida à boca, uma das vezes em que lhe estava
a dar uma maçã, foi mordido na mão. Sim esta era daquelas que mordia a mão a
quem lhe dava o pão. Quem caminhasse logo atrás dela arriscava-se a levar um
bom pinote, que não esqueceria facilmente e que o diga a Dona Clementina, o
José bem avisou: “saia de perto da burra, senão ela ainda lhe dá um pinote.”
Ainda não tinha acabado de falar e já o lá tinha. Quem a levasse pela rédea, à
corda também não estava seguro, pois ela não hesitava em passar-lhe por cima e
em seguir em frente, o José passou por uma experiência dessas, pelo menos por
uma e eu também passei por outra. Não respeitava mesmo ninguém. Acho que só
respeitava o dono. OU talvez só o dono se fizesse respeitar.
Como disse sempre que lhe cheirava a trabalho, a burra
só não se punha no piro senão pudesse. Para evitar que esta situação estivesse
sempre a acontecer o dono vendava-a. E nessas alturas não havia como escapar ao
trabalho. Era uma burra forte, aguentava com cargas de peso, mas acho que
muitas vezes o pessoal exagerava na carga, porque muitas vezes ela caia com o
peso, com o peso da carga e com as pedras dos caminhos. O cenário era bem
triste, ver aquele animal caído e ainda por cima com uma grande carga em cima.
No momento que escrevo passam-me esses acontecimentos pela retina.
Um dia o pai morreu, os nossos trabalhos agrícolas em
parte terminaram, nós íamos mudar de casa, uns continuaria a dedicar-se aos
estudos, eu ia começar e o José saiu para trabalhar noutra profissão, bem longe
de nós. Por isso já não fazia sentido termos a burra, a casa para onde íamos
também não tinha espaço para ela, por isso acabamos por vendê-la. Ainda durou
uns tempos nas mãos do novo dono, mas um dia também acabou por morrer. Para
burra já tinha uma certa idade, por isso é a lei da vida e como se costuma
dizer por lá: “tudo vai atrás do dono”.
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