terça-feira, 29 de abril de 2014

Chamava-se Burra


Quanto todos nós cá chegamos, ela já por cá estava. Já fazia parte da família. Já ajudava no trabalho e no “ganha pão de cada dia!”

Era a nossa burra, não tinha nome, era apenas e somente burra. Também ela era como não podia deixar de ser a burra de carga, a que carregava tudo e todos. Quem de nós não andou vezes sem conta à bolei, simplesmente no seu dorso, outras vezes coberta e protegida pela albarda, e outra vezes com as cangalhas. Nas cangalhas onde todos nós cabíamos. Nós os cinco, uns de um lado e outros de outro, era a festa completa. Disto nem de outras coisas a burra nunca disse nada. Mas se ela suspeitasse que ia trabalhar, e ela suspeitava muitas vezes disso, fugia a quatro patas, olhem que ela nem sequer se importava de dormir fora de casa, estava-se nas tintas para isso. Por vezes era procurada já noite dentro, acabando por ser encontrada, outras vezes só aparecia ao outro dia. Já não tenho bem a certeza, mas acho que ela chegou a desaparecer por mais que um dia. Digam lá se a nossa burra não era esperta.

Mas ela não trabalhava apenas para nós, ela também trabalhava para a vizinhança, que muitas vezes a pedia emprestada. Levavam-na de manhã e traziam-na de volta à noite. Em troca algumas vezes vinha acompanhada de uns quilos de arroz, massa e afins, que serviam de sustento à família. Mas o senhor José Augusto, dono da burra e nosso pai nem sempre ficava contente com o regresso da sua burra. Porque ela vinha muitas vezes cheia de mataduras (feridas), ele dizia que a burra olhava para ele com muita tristeza. Por isso ele deixou de emprestar a burra, quando alguém lha pedia emprestada, ele preferia acompanha-la. Só ele a sabia tratar bem, envolver-lhe com panos ou cobertores para que as carregas de lenha não a magoassem, tinha muito cuidado com a alimentação dela.


Não sei o que é que ela sentia por nós, mas também não devia nutrir qualquer tipo de simpatia pelo pessoal, que carregava vezes sem conta no lombo. São disso os diversos episódios: quando levava um de nós a acavalo desatava a correr até atirar com o “cavaleiro” ao chão, em seguida ia simplesmente pastar, como se nada tivesse acontecido. O Augusto era um dos seus bons amigos, gostava de lhe dar comida à boca, uma das vezes em que lhe estava a dar uma maçã, foi mordido na mão. Sim esta era daquelas que mordia a mão a quem lhe dava o pão. Quem caminhasse logo atrás dela arriscava-se a levar um bom pinote, que não esqueceria facilmente e que o diga a Dona Clementina, o José bem avisou: “saia de perto da burra, senão ela ainda lhe dá um pinote.” Ainda não tinha acabado de falar e já o lá tinha. Quem a levasse pela rédea, à corda também não estava seguro, pois ela não hesitava em passar-lhe por cima e em seguir em frente, o José passou por uma experiência dessas, pelo menos por uma e eu também passei por outra. Não respeitava mesmo ninguém. Acho que só respeitava o dono. OU talvez só o dono se fizesse respeitar.

Como disse sempre que lhe cheirava a trabalho, a burra só não se punha no piro senão pudesse. Para evitar que esta situação estivesse sempre a acontecer o dono vendava-a. E nessas alturas não havia como escapar ao trabalho. Era uma burra forte, aguentava com cargas de peso, mas acho que muitas vezes o pessoal exagerava na carga, porque muitas vezes ela caia com o peso, com o peso da carga e com as pedras dos caminhos. O cenário era bem triste, ver aquele animal caído e ainda por cima com uma grande carga em cima. No momento que escrevo passam-me esses acontecimentos pela retina.

Um dia o pai morreu, os nossos trabalhos agrícolas em parte terminaram, nós íamos mudar de casa, uns continuaria a dedicar-se aos estudos, eu ia começar e o José saiu para trabalhar noutra profissão, bem longe de nós. Por isso já não fazia sentido termos a burra, a casa para onde íamos também não tinha espaço para ela, por isso acabamos por vendê-la. Ainda durou uns tempos nas mãos do novo dono, mas um dia também acabou por morrer. Para burra já tinha uma certa idade, por isso é a lei da vida e como se costuma dizer por lá: “tudo vai atrás do dono”.  

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